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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Capítulo 8: julho, 2006

Branca como nuvens de um dia limpo, cabelos ruivos, sardas, olhos grandes belamente esbugalhados de cor peculiar -uma espécie de verde escuro cinzento mesclado com um tom de azul veludo-, olhos esses que quase se fechavam ao florescer de um sorriso no rosto da, não tão pequena nesta época, infectada. Aqueles olhos... hipnotizavam qualquer um. Era aniversário de seu pai, e Ana lhe compara uma lembrancinha que fora entregar em seu trabalho. Ele fazia 39 anos -dia 17 daquele mês. E estava prestes à ganhar um filtro dos sonhos (Sebastião ensinou Ana desde criança à seguir a tradição indígena de ter um filtro dos sonhos na janela do quarto) feito pelas mãos da filha. A caminho do trabalho do pai, a menina passa por ruas que já havia passado diversas vezes, mas daquela vez ia percebendo detalhes nos quais nunca havia notado. Como, por exemplo, o pequeno detalhe de que naquela casa bonita que ficava há duas ruas do hotel em que seu pai trabalhava e que aquela senhorinha que a cumprimentava toda vez que a via estava sempre sentada na calçada fumando, morava um garoto. Ele aparentava ter a sua idade. Cabelos bem negros, olhos mais ainda. Uma tremenda cara de sono que fez a menina se questionar: "ele acabou de acordar ou sua cara de sono está sempre aí?" -mais uma coisa que Ana gostava era pessoas com cara de sono. A senhorinha que estava sentada na calçada da casa, como de costume, cuprimentou Ana, mas, percebendo o embrulho em suas mãos, decidiu pela primeira vez prolongar o efêmero diálogo.
   -Dê meu feliz aniversário a seu pai, menina.
Ana se questionou como é que ela sabia que o presente era para seu pai e que era um presente de aniversário.
   -...sim, eu dou sim. - Respondeu a menina, acanhada e ainda caminhando.
Quando chegou com o pai, como não poderia demorar muito por conta do curto horário de intervalo do trabalho, foi breve. Lhe deu um abraço, um beijo na testa, "feliz aniversário" e "está aqui seu presente". Depois da cerimônia, decidiu perguntar sobre a senhorinha daquela casa.
   -Ah, é a Mari! Ela lhe viu nascer, meu bem. Trabalhou lá em casa até sua mãe engravidar de você, que foi quando ela também engravidou. Ela ficou com a gente até poucos meses antes de você nascer. A gravidez dela era de risco e ela teve de ficar alguns meses internada. Quando ela saiu do hospital com o menino, foi passar uma temporada lá em casa, já que não tinha família aqui e precisava de ajuda com os cuidados do bebê. Você e Bernardo conviveram como irmãos até os um ano e alguns meses. Que foi quando... o pai dela faleceu e ela teve... que voltar para a cidade natal para ficar com a irmã mais nova. Você era apenas uma criança, mas sofreu bastante ao se separar de Bernardo. Eram muito ligados.
   -E quando foi que ela voltou? Porque não voltou para nossas vidas?
   -...quando ela voltou, ficou sabendo da sua mãe... ela não quis se aproximar da gente novamente, não por aversão. Mas porque elas cresceram juntas, mesmo Mariana sendo uns tantos anos mais velha que sua mãe, elas sempre foram muito amigas. Foi uma forma de economizar sofrimento, você me entende?
   -Acho que sim... E então é por isso que ela sabe que hoje é seu aniversário e me mandou lhe dar os parabéns?
   -Sim, é por isso. Dá próxima vez que a vir, mande meus agradecimentos.
   -Mas, papai, ela ficaria chateada se eu tentasse me aproximar deles?
   -Acho que... Bom, filha, você já tem idade para entender as coisas, acho que não faria mal algum sentares com ela para ter uma boa conversa.
No caminho de volta, Ana fez questão de passar por aquela mesma rua. E a senhorinha, que até alguns minutos atrás era apenas uma desconhecida na cabeça da menina, ainda estava lá, sentada na cadeira de embalo, olhando para as nuvens, fumando seu cigarro. Ana decide se aproximar.
   -Dona... dona Mariana?
Mariana percebe que o pai havia lhe falado dela, pois sabia que até aquele momento anterior Ana não a reconhecia.
   -Olá, meu bem. -respondeu Mariana, bem receptiva.
   -É... perdoe-me a intromissão, mas... eu posso sentar com a senhora um pouco?
   -Mas é claro, querida. Apesar de tudo, estarei sempre à disposição dos Bonassi.
   -Bem, queria conhecê-la melhor. Já que ajudou a cuidar de mim e que minha mãe ajudou a cuidar de seu filho. Minha mãe... é... ah, desculpe! Eu não...
   -Não se preocupe, não é proibido falar dela. Hoje, já me sinto um tanto menos desconfortável.
   -É, o que eu sinto quando lembro do que aconteceu nunca muda, mas eu tento me lembrar apenas do que foi bom, antes de tudo isso.
   -Certa você.
   -Bem... meu pai me falou um pouco sobre você e o...
   -Bernardo. Ele sempre quis conhecer você. Aliás, reencontrar você. De tanto que lhe falei sobre sua família e sobre o quanto vocês eram ligados.
   -Ele está?
Ana sabia que ele estava.
   -Ele está. Dormindo, para ser sincera. Desde que voltamos para cá ele não fez muita questão de fazer amigos, na verdade ele nunca fez. Hoje faz aula de tudo quanto é coisa. Violão, bateria, guitarra... mesmo assim, não se apega à ninguém. E quando está em casa só sabe dormir. Ele é muito sozinho, sabe?
Sabendo daquilo, Ana notou o porque deles serem tão ligados quando pequenos. Ele era sozinho como ela. -quem sabe não era mais um infectado com o vírus do caos?
   -Sei... sei bem como é isso. Também nunca fui muito de ter amigos.
   -Ele descarrega toda a solidão e tristeza na música. Você gosta de música?
   -Sim, gosto muito. Sempre quis aprender a tocar alguma coisa, mas meu pai nunca me escutou muito quanto a isso.
   -Posso pedir para Bernardo lhe ensinar! Talvez facilite a aproximação de vocês. O que você acha?
   -Se não houver problemas para ele eu aceito.
Bernardo ganhara ali uma aluna, sem nem mesmo saber. Naquele momento em que elas conversavam, ele sonhava com um show de rock, onde era o baterista da banda que estava a tocar. Ele tocava violão, guitarra, baixo, teclado, gaita, mas sua paixão mesmo era a bateria. Ela era a que mais conseguia levar suas angústias para bem longe, tão rápido.
Passaram um bom tempo conversando, foi quando Mariana disse que iria no mercado central, que era um tanto distante dali, e pediu para Ana reparar a casa enquanto seu filho dormia. E assim foi feito. Ana entrou e ficou na sala assistindo tv. Quando escuta uns passos na escada seguidos de:
   -Mãe, você fez o café?
Ana olha para trás e "puxa vida, que carinha mais fofa". Bernardo arregala os olhos inchados de sono e dá um passo para trás.
   -Mas... Quem é você?
   -Sou Ana... a filha do... é... meu... meu pai é amigo da sua... ãhn, sou Ana.
Cria-se um clima meio tenso entre os dois. Bernardo, metade ainda dormindo, demora um pouco para raciocinar, mas consegue entender que Ana era a "tal Ana" de quem tanto ouviu falar na vida.
   -Ana!... Hum, Ana... Então você é Ana...
   -Bom, sim. Eu acho...
   -Como... ãhn, onde está... minha mãe?
   -Ela foi no mercado, disse que não demoraria.
   -Droga! Ela sempre demora. Faz questão de ir andando, mas o mercado é muito longe daqui.
   -Mas porque "droga!"?
   -Porque... porque... é...
   -Porque você vai ter que esperar ela voltar para que ela faça o café?
   -Hum... mais ou menos isso.
   -E porque você mesmo não faz?
   -Meu café é horrível. Forte e amargo. Que a nem a minha vida...
Ana pensou rápido e decidiu se oferecer para ensiná-lo a fazer café, já que ele daria aulas à ela.
   -Bom... meu café é doce, e... as pessoas costumam dizer que é gostoso. Posso te ensinar.
   -Sua vida é doce?
Ana percebera ali a gravidade da situação. Ele se deixava transpirar angústia de vida. E seus olhos de sono e testa franzida gritavam por ajuda, enquanto sua boca usava de metáforas para enigmizar o caminho.
   -Bom... não muito. Mas eu uso do café para adoçá-la um pouco.
E Bernardo pensou em como seria bom se aproximar dela. Pensou em como seria um ruim. Pensou que ela poderia ser uma ajuda. Aqueles olhos... "Uns trinta minutos olhando para eles já me ajudariam", ele estava encantado com a beleza da jovem. Mas havia sono demais dentro dele para que ele demonstrasse.
   -É... Acho que podes me ensinar, então.
Desajeitada e timidamente os dois foram até a cozinha e puseram a "mão na massa". Dialogaram, com o passar dos minutos, descontraidamente.
   -E você... você namora? Digo... tem namorado? -acanhado, questionou Bernardo admirando aqueles cativantes olhos um pouco mais de perto.
   -Não... -mais acanhada ainda respondeu Ana.- E você...
   -Também não... mas... você é tão bonita, porque não tem um namorado?
   -Ah, primeiro que não sou tão bonita, segundo que nem amigos eu tenho, imagine um namorado... Você também é bonito e não tem namorada. Acho que beleza não deve significar tanto, então...
E o diálogo se estendeu até o café ficar pronto, e os dois o provaram juntos.
   -Se sua vida for tão boa quanto seu café, creio que sejas muito feliz...
   -Quisera eu que fosse! Mas... obrigada.
Se sentam no sofá da sala e continuam a conversar, ainda que timidamente.
   -Você gosta de música?
   -Sim, sim.
   -Toca algum instrumento?
   -Hum, não. Sua mãe até me disse que... poderias me ensinar. Fiquei com receio de que não gostasses da ideia...
   -Ensinar...?
   -Mas, só se você quiser! Se não quiser, tudo bem, eu...
   -Não, eu quero, mas é... não sei se sou bom em ensinar... mas tudo bem. Você quer aprender o que? Violão?
   -Qualquer coisa. Bateria seria uma boa...
   -(As garotas normalmente querem aprender a tocar violão, mas ela quer aprender bateria. Será que já posso pedir para casar com ela?) -pensou ele. Ah... ok, bateria então!
Mariana chega do mercado e nota a aproximação dos dois. Pensa em ficar observando, mas prefere entrar logo.
   -Vejo que estão se dando bem. Fico feliz por isso!
   -Ah... oi mãe. Ana me ensinou a fazer café! -responde o garoto entusiasmado.
   -Mas... o que? Vocês se deram tão bem assim? Esse menino nunca quis aprender a fazer café direito comigo, Ana! Obrigada, viu?
As horas se passaram, já era noite. Ana percebeu que já era hora de voltar para casa. E feliz com a sua tarde de novidades, se despede.
Ao chegar em casa, espera o pai chegar do trabalho para contar o que havia vivido naquele dia. Sebastião ficou feliz com a aproximação de Ana com Mariana e Bernardo. Mas, sabendo do que poderia acontecer, tentou avisar à filha que as coisas deveriam continuar como estavam antes, e que talvez as aulas de bateria não fossem uma boa ideia. Ana sem entender muito bem, questionou o pai sem obter respostas. O que a deixou receosa, mas não a impediu de investir nas aulas.
Naquele dia Ana sonhou com um assalto de grande repercussão em sua cidade.

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